segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Do Fiasco da Federação Carnavalesca ao Surgimento do "Banho de Conde"


Leonardo Dantas Silva
No princípio dos anos trinta do século XX, as rivalidades entre os clubes carnavalescos deram origem ao que se convencionou chamar de “carnavais de sangue”…
Apesar da severa repressão da polícia, as rixas entre as agremiações do nosso carnaval continuaram presentes nas ruas e no noticiário policial da imprensa. Tais conflitos tornaram-se uma preocupação não só das autoridades governamentais como de grupos da sociedade; a insegurança era tanta que havia agremiações que para sair às ruas solicitavam a presença de uma escolta da cavalaria.
Em 1932, carnavalescos preocupados com a situação da violência entre os clubes resolveram fundar a Liga Carnavalesca do Recife, em reunião realizada no Clube das Pás, na Rua Velha nº 245. Dois anos mais tarde, precisamente em 26 de dezembro de 1934, um grupo de executivos, alheios ao chamado “carnaval de rua”, atendendo a sugestão do jornalista Mário Mello, iniciaram os contatos para a fundação de uma sociedade civil que viesse aglutinar todas as agremiações carnavalescas.
No escritório do engenheiro J. Pinheiro, da Pernambuco Tramways, empresa concessionária de distribuição de energia elétrica e do sistema de bondes do Recife, esteve reunido o diretor daquela companhia J. P. Fish, o superintendente da The Great Western do Brazil Railway, Arlindo Luz, além dos sr. Camucé Granja e, o pai da ideia, o jornalista Mário Mello, com o objetivo de traçar as bases de fundação do que veio a ser a Federação Carnavalesca Pernambucana(¹) .

Na ocasião foi redigida uma carta circular a todas as agremiações responsáveis pelo Carnaval do Recife que, por sua importância, passo a transcrever:
O Carnaval de Pernambuco é típico e tem sido louvado em toda parte onde dele se tem conhecimento, pela originalidade, de que resultou o nosso frevo. Nota-se, porém, que a muita dispersão de esforços, o que é prejudicial. Pensando nisso alguns elementos sociais, interessados pelos progressos de Pernambuco e para que o Recife se torne cidade de turismo, resolveram fazer a coordenação de todos os elementos numa Federação dos clubes existentes e que de futuro se possa organizar. Para o bom êxito da ideia os seus promotores já se puseram em contato com a maioria dos clubes carnavalescos desta Capital, ficando acertado que a referida Federação seria organizada dentro das bases seguintes:
I – Dada a rivalidade ainda existentes entre alguns clubes, a administração central dessa Federação deverá ser constituída por pessoas de representação e prestígio social, alheias aos mesmos clubes para que possa realizar o seu progresso com imparcialidade, tendo, no entanto, cada clube seus delegados junto à Federação.
II – Obter dos grandes empresários, bancos, negociantes em grosso etc., auxílio para o caixa geral, sem prejuízo das coletas que os clubes costumam fazer entre os seus protetores.
III – Esse auxílio será empregado: a) no programa geral organizado pela Federação; b) no auxílio equitativo aos clubes que tomarem parte no carnaval; c) em prêmios aos clubes que no modo mais condigno se apresentarem; d) no desenvolvimento do turismo.
IV – Moldar o carnaval no sentido do tradicionalismo histórico e educacional, fazendo reviver costumes nossos, tipos de nossa história, fatos que nos educam.
V – Colaborar com os poderes públicos num programa que haja um dia exclusivo para o frevo dos clubes pedestres, sem os atropelos do corso e um dia para os clubes alegóricos.
VI – Organização de comissão para a propaganda do carnaval de Pernambuco nas cidades do interior e dos Estados vizinhos.
VII – Pugnar pela harmonia de todos os clubes, afim de que se possa dar sempre o maior brilho às festividades do Carnaval.
VIII – Propaganda do nosso carnaval, por meio de filmagem e irradiações das nossas músicas no interior.
O documento circular, assinado pelos srs. Arlindo Luz, Superintendente da The Great Western of Brazil Railway Cº. Ltd.;  J. P. Fish, Superintendente da Pernambuco Tramways & Power Cº. Ltd.; Camucé Granja e o jornalista Mário Mello, redator do texto, foi enviada a todas as agremiações carnavalescas, marcando “uma reunião inaugural” para a quinta-feira 3 de janeiro, às 20 horas, “na sede da Federação Pernambucana de Desportos, na Rua da Aurora nº 237”.
Assim, naquela noite, veio a ser criada a Federação Carnavalesca Pernambucana tendo, na ocasião, o jornalista Mário Mello apresentado um e um esboço de estatutos da nova entidade, que deveria pugnar pelos seguintes fins:
I – Procurar a harmonia entre os clubes filiados;
II – Distribuir auxílio equitativo, cada ano, aos clubes que tomarem parte no carnaval;
III – Dar prêmios aos clubes carnavalescos que de modo mais condigno se apresentarem;
IV – Desenvolver o turismo;
V – Moldar o carnaval no sentido do tradicionalismo histórico e educacional, fazendo reviver costumes nossos, tipos de nossa história, fatos que nos educam;
VI – Colaborar com os poderes públicos para a regulamentação e boa distribuição do tráfego, a fim de que não haja prejuízo do frevo que merece apoio, para a sua conservação típica;
VII – Organizar comissões para propaganda do Carnaval de Pernambuco nas cidades do interior e Estados vizinhos, bem como por intermédio do rádio e da cinematografia.
Em memorial enviado à Assembleia Legislativa, assinado pelo presidente J. P. Fish, com data de 26 de agosto de 1936, a Federação Carnavalesca Pernambucana informa dispor de 165 agremiações filiadas e reivindica o seu reconhecimento como de utilidade pública e a concessão de uma subvenção anual para a realização do carnaval.

Naquele memorial, depois de descrever as origens históricas do Carnaval do Recife, enfatiza:
Esses agrupamentos carnavalescos viviam em ambiente de rivalidade tal, hostilizavam-se de tal maneira que havia receio de irem às ruas as pessoas pacatas, porque o encontro de dois clubes carnavalescos era sinal de derramamento de sangue. Vitorioso, era o clube que deixava nas ruas maior número de feridos e até de mortos. “Os compositores faziam músicas especiais para o momento do encontro, conhecidas como abafadoras, não só para superar a orquestra do clube adversário, como para excitar à luta os próprios partidários.”
— Esse tipo de composição, também denominada de frevo coqueiro, é formada por uma linha melódica maleável, leve em notas mais ou menos longas a exigir mais apuro por parte dos trombones e trompetes, de modo a tornar inaudível a orquestra do adversário.
Submetido às comissões, foi o projeto relatado pelo então deputado Artur Moura, onde ressalta o serviço que vem prestando a nova instituição em favor da organização do carnaval, ordem pública, educação, preservação moral dos costumes e ideologias dos grupos carnavalescos, bem como saúde pública, “no seu largo sentido e atua, sobretudo quanto às classes mais pobres como sedativo de incontestável eficácia”.

Adianta em outro parágrafo que a diretoria da Federação era formada por elementos estranhos aos quadros sociais dos clubes filiados, sendo constituída de “pessoas do mais alto e merecido conceito intelectual e moral”, salientando:
A Federação realiza um largo programa. Transforma cada associação carnavalesca em um núcleo educativo. Proíbe qualquer preocupação político-partidária; guerreia as ideias subversivas da ordem constitucional vigente no país; defende o respeito à lei e a autoridade pública encarregada de aplicá-la, transforma os fúteis motivos carnavalescos em oportunos pretextos para fortalecimento no nativismo sadio e construtor.
Não se diga que os festejos carnavalescos, presididos pela Federação atentam contra o tradicional sentimento religioso e os costumes do nosso povo.
Muito ao contrário disto o frevo se afigura um derivativo. Na sua expansiva inocência se acolhem e satisfazem as famílias que receiam o perigo dos salões supercivilizados, onde o éter e o champagne comumente justificam o sacrifício dos bons costumes.
Como se depreende do memorial assinado por J. P. Fish, referendado pela exposição de motivos do deputado Artur Moura, existia então uma preocupação bastante acentuada quanto às ideologias em voga, o comunismo e o integralismo, que, segundo o presidente da Federação, poderiam atingir os clubes carnavalescos.
A nova instituição, segundo se depreende da leitura da documentação oficial publicada no Anuário de Carnaval Pernambucano 1938, funcionava como uma espécie de tutora, exercendo por vezes uma censura oficializada, das agremiações carnavalescas; atividade vista com simpatia naqueles tempos de Getúlio Vargas. – No seu memorial dirigido à Assembleia Legislativa, o presidente J. P. Fish chega a enfatizar:
Outro aspecto que não deve ser silenciado é a cooperação que prestamos à ordem pública. Proibida, terminantemente, qualquer manifestação de caráter político em seu seio ou no de seus clubes filiados, cujos estatutos são por nós revistos e consertados, fazemos tenaz propaganda contra ideias extremistas, por meio de doutrinação, evitando assim que os elementos de nossos clubes se contaminem, e até mesmo indicando o bom caminho aos periclitantes.
Ninguém melhor do que a Secretaria de Segurança Pública, que, a nosso convite, tem um representante permanente junto a nós, conhece esta face de nossa cooperação com o poder público, que, por sua vez, tanto nos tem ajudado.
Mas nem só o carnaval era a preocupação dos criadores da Federação Carnavalesca Pernambucana. Do memorial de J. P. Fish e da exposição de motivos do deputado Artur Moura, a quem coube relatar o projeto nº 70/1936, que veio dar origem à Lei Estadual nº 212, sancionada pelo governador Carlos de Lima Cavalcanti em 3 de dezembro de 1936, se depreende uma preocupação bastante acentuada quanto às ideologias em voga, muito especialmente com o comunismo, que  poderiam vir atingir os quadros sociais dos clubes carnavalescos. A nova instituição funcionava como um órgão de tutela, exercendo por vezes a censura oficializada, atividade vista com simpatia naqueles tempos de Getúlio Vargas:
A Federação realiza um largo programa. Transforma cada associação carnavalesca em núcleo educativo. Proíbe qualquer preocupação político-partidária; guerreia as ideias subversivas da ordem constitucional vigente no país; defende o respeito à lei e à autoridade pública encarregada de aplicá-la, transforma os fúteis motivos carnavalescos em oportunos pretextos para fortalecimento do nativismo sadio e construtor.
Desse modo foi a Federação Carnavalesca Pernambucana criada por um grupo de elementos estranhos ao Carnaval do Recife, sob a inspiração do jornalista Mário Mello, tendo como primeiro presidente um norte-americano, J. P. Fish, conhecido popularmente como “Mister Ficher”.

De tanta organização surgiu um episódio curioso contado pelo jornalista Selênio Homem de Siqueira ao lembrar que, na sua programação carnavalesca a Federação Carnavalesca Pernambucana programou para a Praia do Carmo, em Olinda, um banho de mar a fantasia com o patrocínio da Pernambuco Tramways, através de Mr. Fish, com a presença das mais tradicionais agremiações do carnaval do Recife.

No domingo aprazado, uma maré alta de lua cheia tomou conta das linhas do bonde, na altura de Salgadinho, e interrompeu o tráfego dos elétricos na antiga Estrada de Luís do Rego, que ligava o Recife à Olinda, tornando, assim, impossível o acesso ao Carmo.

Os carnavalescos, devidamente fantasiados, tiveram que cruzar a água do mangue a pé, encharcando suas fantasias, para nesse estado atingir o Varadouro e a Praia do Carmo, onde fora armado um grande painel de fogos de artifício comemorativo.

Como uns “pintos molhados” lá foram os carnavalescos do Recife participar do propalado “banho de mar a fantasia”…
A verve olindense, insuflada pela velha rixa dos habitantes de Olinda para com os do Recife, originária ainda dos confrontos acontecidos no século XVIII, não deixou passar despercebido tal fiasco…

Surgiu assim Banho de Conde, um frevo ainda hoje cantado nas ruas e ladeiras da Velha Marim, composto por Wilson Wanderley e Clídio Nigro, gravado pela Fábrica Rozenblit no disco Carnaval de Olinda (LP 20.000 – 1979), cuja letra relembra a importância do “padroeiro Ficher” nos festejos carnavalescos de então:
Mandei formar,
a turma
Pra tomar banho,
na beira do mar
Não vou ficar,
molhado
Mas vou dar água
pelo Carnaval
Vem! … vem padroeiro Ficher!
Vem, vem acender o painé! 
Não mergulhei, mas molhei
Banho de maré tomei
________________
1) Anuário do carnaval pernambucano 1938. Recife: Federação Carnavalesca Pernambucana, 1938.

Um comentário:

Festa dos Músicos de Recife disse...

Excelente texto! Quanta informação!
Sempre ouvi este clássico das ladeiras olindenses, mas nunca entendi direito o banho de maré, tampouco o padroeiro Ficher!
Parabéns aos mantenedores desse quase santuário ao frevo que é um de nossos maiores patrimônios culturais!